segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Crack não responde nem por 5% das apreensões de entorpecentes no Acre


O crack é prioridade secundária na agenda de Segurança Pública do Acre. Por um motivo simples: não representa nem 5% do volume de apreensões feitas pelas forças policiais. O problema é percebido pelas autoridades; os pontos de consumo estão mapeados; os efeitos fulminantes da droga preocupam, mas, na prática, o volume é quase residual no Acre.

Jovem assustou população ao ter overdose de crack em 
frente ao Palácio Rio Branco


Prioritário para o poder público é quebrar várias rotas de tráfico de um dos componentes do crack: a cocaína. Esta, sim, merece atenção extrema inclusive porque combater o tráfico de cocaína é combater o crack diretamente. Hoje, estima-se que entre 700 e 900 profissionais das polícias Civil, Militar e Federal estejam quase que exclusivamente dedicados ao combate ao macro e ao micro tráfico da cocaína na região.

Só a Polícia Federal apreende uma média que varia de 700 Kg a 1 tonelada de entorpecentes por ano. Já a Polícia Civil apreende entre 200 e 300 Kg. A Polícia Militar apreende menos porque o perfil de trabalho é outro, além de assumir outras atribuições na área de Segurança Pública.
Os serviços de inteligência e as melhorias na condição de trabalho já começam a ter efeitos práticos. Ano passado, a Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) de Rio Branco, sob a coordenação do delegado Pedro Paulo Buzolin, apreendeu 200 Kg de drogas ilícitas. Neste ano, o mês de janeiro ainda nem terminou e já foram apreendidos 100 Kg.

José Carlos Calazane diz que governo é muito presente


Sem ‘cracolândia’
 

Para que o Acre construa as condições adequadas à existência de uma ‘cracolândia’, é preciso um descaso do poder público sem precedentes. “A existência de uma cracolândia aqui no Acre é algo pouco provável”, analisa o superintendente da Polícia Federal no Acre, José Carlos Chalmers Calazane. “O governo é muito presente”.

No entanto, a menos de 150 metros da sede da Polícia Federal, existe um local que é referência para dependentes químicos, sobretudo em crack: o bairro D. Giocondo, mais conhecido como Papoco. No fim de 2010, o local foi alvo de uma ação conjunta entre as polícias Militar, Civil e Federal. A operação foi uma evidente resposta à opinião pública, que cobrava medidas enérgicas no combate ao consumo de crack. O Papoco foi invadido.
Um ano após a operação, os cachimbos de crack voltam a estalar as pedras, próximo dos federais. “A Polícia Federal é uma polícia eminentemente de inteligência e investigação”, explica Calazane. “Nosso objetivo é repreender as grandes organizações criminosas e não temos condições de rea-lizar trabalhos ostensivos nas chamadas bocas de fumo”.
D. Giocondo: área prioritária
A Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social já tem projetos específicos para fazer intervenções no bairro D. Giocondo (Papoco). A região é tratada pelo Governo do Acre como uma ‘área prioritária’. Há tempos deveria ter recebido intervenções em urbanismo e geração de renda, mas as ações foram sendo adiadas devido a questões orçamentárias.
O bairro é composto basicamente por famílias pobres ou extremamente pobres. Não é de forma aleatória que o local foi escolhido pelos dependentes químicos para uso do crack: o acesso é difícil, pouco iluminado, com muitos becos, vielas e próximo do Centro. A mendicância e prática de pequenos furtos para alimentar o vício ficam garantidas na região central da cidade.
Outro ponto muito usado pelos usuários de crack fica próximo à Polícia Militar, em uma casa abandonada na Avenida Getúlio Vargas, Centro da cidade, quase ao lado da Central de Articulação das Entidades em Saúde. “Esse problema do crack aqui em Rio Branco é mais uma questão de saúde pública do que de polícia”, opina o superintendente da Polícia Federal no Acre. “Eles são pessoas doentes que precisam de tratamento médico”.
“Eu tinha que fazer ‘acerto’ todos os dias”
F.R.S teve a primeira experiência com drogas aos 15 anos. Hoje, com 19, frequenta os programas de tratamento a dependentes químicos oferecidos pelo Serviço Hospitalar de Referência Álcool e outras Drogas disponibilizado pelo Hospital de Saúde Mental do Acre (Hosmac).
FRS contou que teve sua 1ª experiência com drogas aos 15 anos; Estela Cordovil
F.R.S percorreu os 5 passos da dependência: experimentador ocasional (recreativo); periódico (passa a recorrer à droga com mais frequência); abuso (maior frequência e maior volume de consumo) e dependência química (uso fora do controle fisiológico e psicológico).
“Eu tinha que fazer ‘acerto’ todos os dias”, lembra F.R.S. O ‘acerto’ é a gíria usada para se referir ao ato de cheirar cocaína. O jovem garante que nunca fumou crack. “Meu problema é com a cocaína”, garante, quase não disfarçando o incômodo de falar sobre o assunto.
“O problema com o crack tem se agravado nos últimos 2 anos”, revela a coordenadora do Serviço Hospitalar de Referência a Álcool e outras Drogas, Estela Cordovil, há 15 anos trabalhando com dependentes químicos. “O maior problema aqui é, de fato, a cocaína”.
Cordovil adianta que o governo já deve implantar o serviço de Consultório de Rua, integrado por uma equipe de médico, psicólogo e assistente social. Ela não entra na polêmica a respeito da internação compulsória, mas informa que já existem recursos federais por meio de decreto assinado pela presidente Dilma Rousseff que garante esse tipo de tratamento para casos específicos.
“Se você amarrar 2 Kg de cocaína no corpo, tu passa”
A declaração de um policial militar (que não quis se identificar) sobre o tráfico no Acre revela uma fragilidade da atuação do poder público. “Hoje, se você amarrar dois ou três quilos de cocaína no corpo e embarcar no aeroporto de Rio Branco a possibilidade de tu embarcar sem ser importunado é grande”, afirma.
Mapa mostra rotas usadas por traficantes para a entrada de drogas no Brasil


A justificativa do policial se baseia na inexistência de postos da PF no terminal aeroportuário da Capital. “Não há policiais federais. Não há uso de cães. Não há nada”.
O transporte de cocaína garante ao traficante a seguinte relação. No Sudeste, 1 Kg de pasta-base de cocaí-na vinda do Acre chega a custar até R$ 30 mil.

Estoque zero
O grau de pureza da cocaína vinda do Peru e da Bolívia ultrapassa 90%. No Sudeste, essa pureza é transformada em lucro porque a pasta-base para ser refinada em vários outros produtos, com lucro adicionado a toda a cadeia.
Atualmente, o Peru é o maior produtor mun-dial de cocaína, seguido da Colômbia e, em terceiro está a Bolívia.
O coordenador da DRE do Acre, Padro Paulo Buzolin, assegura que essa proximidade faz com que o tráfico tenha uma cara muito própria no Acre. “O tráfico aqui é prioritariamente feito por pequenas quantidades”, detalha. “Por que ter estoque de droga se o meu principal fornecedor está aqui do lado?”

Geografia do crime
Por estar em área de fronteira e em região de cabeceiras de rios, a geografia do Acre dificulta o combate ao narcotráfico. No Vale do Juruá e no Vale do Acre, há várias rotas de tráfico, algumas funcionam como ‘pontos cegos’ para a abordagem policial.

Esses ‘pontos cegos’ não estão localizados apenas em regiões isoladas. Na Estrada do Agricultor (Rodovia AC 475), a droga é transportada da Bolívia passando por Plácido de Castro e seguindo pela BR 364.
Os rios que seguem quase paralelos funcionam como veias de entrada da droga e deixam mais vulneráveis as fronteiras.

Juventude presidiária
Os dados da Secretaria de Estado de Segurança Pública não deixam dúvidas. Os pequenos traficantes, que se caracterizam por transportar pouca quantidade de droga, são jovens. De acordo com a Secretaria de Estado de Segurança Pública, foram presas, somente no ano passado, 1.009 pessoas envolvidas com o narcotráfico no Acre, entre homens e mulheres. Desse total, 51,93% estão na faixa etária entre 18 e 24 anos. De 25 a 29 anos, a percentagem cai para 15,86%. E entre 30 e 34 anos, 8,33%.

“Internação compulsória não resolve”, afirma delegado
O coordenador da DRE de Rio Branco, delegado Pedro Paulo Buzolin, é categórico. “A internação compulsória não resolve o problema”, sentencia. A afirmação do delegado se baseia em um estudo feito pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) que demonstra 80% dos usuários são eventuais (ou recreativos). Dos 20% dos usuários que são dependentes químicos, algo em torno de 2% foram para a rua por causa da droga.
Acre ainda está longe de viver uma situação 
como a da cracolândia de São Paulo
“Isso significa que não adianta implantar a internação compulsória porque a droga não é a causa. Ela é consequência”, avalia Buzolin. “A causa do problema está na falta de uma educação adequada, Saúde Pública adequada, desestruturação familiar. A droga não é o problema”.
A existência de uma cracolândia ocorre por uma soma de fatores com destaque para a ausência das ações de governo nas comunidades (Estado ausente), acesso fácil à droga e o potencial de intoxicação do entorpecente.
Crônicas do crime

Cena 1. Era noite, no Bairro da Paz, periferia de Rio Branco. Missão: cumprimento de mandado de busca e apreensão a uma traficante. A ação era coordenada pelo então responsável da DRE da Polícia Civil do Acre, André Monteiro. O grupo de policiais e o delegado esperam na esquina, dentro do carro preto da corporação. Outros policiais, disfarçados, seguiam a pé pela rua esburacada e sem calçamento. O movimento de pessoas na pequena casa de madeira era constante. Dez minutos. Quinze. Vinte minutos. Entram e saem. Entram e saem.

Dois meses de investigação. Serviços de inteligência integrados. Ordens e contra-ordens da Justiça. Discussões. Broncas. Infiltrados (ou velados, como se diz na gíria policial, com informações precisas).
Nenhum jornalista sabendo. Ninguém vazou informação. O trabalho seguia cristalino. Todo esforço estava em xeque naquele momento. “É missão! É missão!” O mantra era repetido mentalmente pela equipe. Nervosismo.
Havia riscos. O lugar tinha sido abastecido no dia anterior. Cocaína. “Coisa fina, doutor”, assegurou um dos velados. “É boliviana”. Em uma situação dessas, sempre há armamentos relativamente pesados e possibilidade real de conflito com os comerciantes do tráfico. “É missão! É missão!” Não tiveram dúvidas. Era a hora.
“No co-mando”, alertou falando baixo e pausadamente o jovem delegado, coordenando a ação do automóvel. Silêncio. “A-ten-ção! Agora!”. Parecia um filme. Em questão de segundos, a casa foi envolvida por homens vestidos de preto da cabeça aos pés. “Polícia Civil! Vocês estão presos!”
Na pequena sala de madeira, uma cena jamais imaginada pelos policiais. Quem estava comercializando a droga eram duas crianças. Uma de oito e outra de 10 anos. Dois dependentes químicos estavam fazendo a compra na hora e ficaram assustados.
“A mãe saiu e alguém tinha que vender”, explicaram as crianças que estavam dormindo quando os usuá-rios começaram a importunar.
A mãe fora vender parte da droga em um bar localizado próximo da casa. Demorou um pouco para “tomar umas” com os amigos. Deixou as crianças dormindo em casa.
A área estava repleta de policiais e o flagrante também foi registrado no bar, onde funcionava outro eventual ponto de venda. A operação foi um sucesso: a Polícia Civil prendeu traficantes, desmontou um ponto de venda forte e quebrou uma rota na Capital.
Mas, a cena das crianças sentadas, diante de uma mesa repleta de papelotes de cocaína impactou o delegado e pai, André Monteiro.
Cena 2. Palácio Rio Branco, Centro da Capital. Manhã nublada de um janeiro chuvoso. Um jovem, aparentando menos de 30 anos, começa a ter convulsões na rampa do prédio oficial. Um transeunte vê a cena e aciona o Samu. Diagnóstico imediato do paramédico: princípio de overdose.
“Ele fuma cachimbo”, reconheceu um homem sujo e mal vestido que viu o convalescente sendo atendido. “Ele é novo por aqui”. A cena foi registrada pelo jovem repórter Luciano Tavares e publicada em recente reportagem. O cachimbo, na verdade, é o instrumento usado para o consumo de crack.
O ‘crack’ é o estalo que a pedra faz quando é submetida às altas temperaturas durante o ato de fumar. ‘Crack’, ‘crack’. E a fumaça começa a ser inalada, com efeitos praticamente imediatos.
A liberação no cérebro de uma substância chamada dopamina dá uma sensação de prazer e euforia do usuário de crack por um período de até 15 minutos.
No Acre, devido ao grau de pureza da cocaína comercia-lizada, os efeitos do crack são mais demorados e mais fortes. Há casos de 20 minutos.
Relações - Uma das relações possíveis entre a Cena 1 e a Cena 2 diz respeito ao drama que o poder público vive por não conseguir dar respostas estruturantes, por mais que se esforce, ao pro-blema do tráfico, comercialização e consumo de drogas.
A polícia que flagra 2 crianças vendendo cocaína no lugar da mãe, quase bêbada no bar próximo de casa, ou o registro de um jovem tendo uma overdose em frente ao palácio do governo são imagens repletas de simbolismo que trazem uma mensagem quase óbvia: o poder público e, por tabela, a própria sociedade vivem uma crise estruturante. Os entorpecentes são instrumentos que apenas revelam essa fragilidade sistêmica.

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